terça-feira, 13 de maio de 2014

Coisas belas e sujas (Dirty pretty things)

Todos nós temos um padrão interno para o que chamamos de justiça. Punir o que é errado costuma ser o reducionismo mais aceito, entretanto somos parciais e incoerentes, seja fazendo vista grossa a um ato censurável cometido por alguém próximo, seja tratando de forma distinta pessoas desconhecidas que cometem o mesmo delito.

Misturando noções de certo e errado, o diretor Stephen Frears conduz seu filme com imigrantes ilegais vivendo em Londres. Viver em uma cidade estrangeira sem o devido visto de permanência já é uma ilegalidade, mas o que se segue são pessoas tentando fazer o possível para sobreviver, sendo exploradas por cidadãos nativos igualmente criminosos, como vemos no filme.

Em um mundo tão globalizado, é um argumento muito raso dizer que os imigrantes ilegais simplesmente deveriam ter ficado em seus países de origem. Pensando na história da humanidade, todo desenvolvimento de nossa sociedade é baseado em migrações, voluntárias ou forçadas. Migrando, o homem chegou a América; primeiro com os indígenas que povoaram o continente, depois com os europeus, que exploraram todos os recursos – naturais e humanos.

Atualmente as rotas migratórias são muito diferentes. Sem a escravidão institucionalizada e com a facilidade de deslocamento, a rota contrária pode ser realizada. Ou seja, ao invés de europeus espalharem-se pelo mundo, africanos, sul-americanos e asiáticos podem tentar uma vida melhor em países com grande responsabilidade sobre a miséria em suas terras natais.

Ainda que os motivos que levem alguém a assumir os riscos de ser imigrante ilegal em um país mais desenvolvido sejam variados, as consequências são sempre parecidas. É o que vemos no filme com o nigeriano Okwe (Chiwetel Ejiofor) e com a turca Senay (Audrey Tautou).

Sem o visto, eles devem permanecer invisíveis na sociedade. Não podem reclamar seus direitos perante as autoridades, o que os torna alvos fáceis para aproveitadores. O fato de serem imigrantes ilegais não dá o direito de serem tratados de forma ilegal.

Um dos primeiros erros do senso comum ao abordar a questão dos imigrantes é alegar que eles roubam empregos da população local. Como vemos no filme e como tentamos fechar os olhos para não ver em nosso cotidiano, os imigrantes são empregados para funções rejeitadas pelos moradores locais, como os bolivianos escravizados em São Paulo, os haitianos recrutados para serviços braçais ou, em países europeus, brasileiros que trabalham fazendo faxina ou trabalhos similares.

No filme o caso é ainda mais grave. Com ambos trabalhando em um hotel, Okwe descobre por acaso que um dos funcionários – um inglês – lidera um esquema de tráfico de órgãos, sendo que muitas vezes os imigrantes tentam trocar um rim por um passaporte legalizado.

Realizada sem as menores condições cirúrgicas, a extração do órgão rende, na melhor das hipóteses, uma infecção gravíssima aos que sequer poderiam procurar um hospital. Isso leva ao extremo a ideia de que uma ilegalidade não justifica a outra. Tanto podemos interpretar a situação do filme como literal, pois em alguns países os imigrantes ilegais são submetidos a qualquer coisa, inclusive mutilação, quanto metafórica, pois em locais onde os imigrantes são mantidos como escravos, vale expressão popular de que para pagar a dívida seria necessário vender um rim.

Durante toda a trama vemos o quando a sociedade é bem mais complexa do que o maniqueísmo entre bem e mal pode indicar. O ápice desta complexidade evidentemente vem no final da história, sem detalhes aqui para não comprometer nenhuma surpresa, mas muito além do filme, vale a pena estendermos suas reflexões para nossa própria sociedade.

É cômodo adotarmos a postura conservadora de apoiar a expulsão dos imigrantes. Enquanto compramos roupas barateadas pela mão-de-obra escrava ou toleramos salários indignos para imigrantes absorvidos pela construção civil, fechamos os olhos para o fato de sermos, todos os brasileiros, frutos de um conjunto de imigrações ao longo da história do país.

Como em qualquer lugar do mundo, nossa xenofobia também é seletiva. Qualquer imigrante oriundo de um país rico que venha abrir uma loja ou restaurante por aqui será bem recebido, sem que ninguém questione sua idoneidade ou os motivos que o fizeram imigrar. Já quando a origem é um país pobre, como a recém onda de imigrantes vindos do Haiti, o pressuposto é de que se tratam de pessoas sem instrução, que nada teriam a acrescentar ao país. Uma visão preconceituosa, que diferente dos imigrantes, de fato não acrescenta nada a ninguém.


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