terça-feira, 23 de abril de 2013

Margaret Mee e a Flor da Lua


A ilustração botânica acompanhou desde cedo a história do Brasil. A natureza exuberante, primeiramente relatada em longos textos à corte portuguesa, passou a ser retratada por autores como Frans Post e Albert Eckhout. Não são poucos os pintores inspirados pela beleza das paisagens naturais brasileiras, mas com o tempo o viés científico ganhou espaço entre as pinturas.

Já na metade do século XX recebemos a visita da britânica Margaret Mee, artista plástica que realizou mais de 400 ilustrações de nossa flora. Homenageada pela escola de samba Beija-flor, em 1994, agora Margaret Mee ganha as telas através da obra da diretora Malu de Martino.

As duas artistas têm em comum o fato de não se aterem ao caráter técnico da ilustração, estendendo o potencial da obra para o alerta aos impactos ambientais que flora vem sofrendo, sobretudo na região amazônica por conta da criação de gado e plantação de soja.

Alguns trabalhos da britânica foram muito bem documentados na época, com fotos e filmagens, além de entrevistas nas quais ela relata um pouco de seu trabalho na selva, incluindo alguns riscos como a intimidação de grileiros. Esse material enriquece o documentário, que é complementado por filmagens contemporâneas coletadas na Amazônia e Rio de Janeiro, onde a artista morou. Tanto as entrevistas com pessoas que trabalharam diretamente com Margaret quanto as paisagens amazônicas são muito reveladoras.

É através dos relatos dos amigos que confirmamos a impressão geral de que pouco mudou desde a década de 50, sendo que muitas situações se agravaram com o avanço do agronegócio. A região que tem potencial para ser o maior centro de pesquisas biológicas do mundo, além de um gigantesco polo turístico que beneficiaria toda a população, mas acaba gerando capital para poucos latifundiários, que exploram a região de forma predatória, comprometendo o equilíbrio ecológico.

E as imagens encantadoras da região amazônica, sobretudo com a alta resolução das filmagens atuais, confirmam o que diz um dos britânicos entrevistados: muitas vezes os trabalhos que retratam a Amazônia não são esclarecedores apenas para estrangeiros, mas também para os próprios brasileiros, que nem sempre conhecem a região como deveriam.

O isolamento da região mesmo entre os brasileiros é benéfico aos exploradores, já que quanto menor a notoriedade, maior a liberdade para desmatar impunemente. Desta forma o trabalho de Margaret Mee divulga um pouco da riqueza desconhecida que ocupa boa parte de nosso território, e o documentário de Malu de Martino resgata tanto a obra quanto a ideologia da britânica.

Ao refazer os passos do último trabalho de Mee, que fazia questão de pintar a Flor da Lua, quando seu corpo já estava debilitado, mas a obstinação continuava intacta, vemos as dificuldades do trabalho, advindas de todos os lugares. O acesso difícil, a precisão de uma flor que desabrocha por apenas uma noite e as adversidades climáticas são apenas algumas dificuldades agravadas pela ação do homem, intervindo diretamente, como a intimidação de posseiros, já citada, ou indiretamente com ações ilegais que causam desequilíbrio ambiental.

Os esforços, tanto da pintora quanto da cineasta, valeram a pena por produzirem trabalhos indispensáveis. Podem ser admirados por leigos, pela beleza intrínseca às obras que envolvem a floresta amazônica, contemplados pela riqueza técnica contida em cada passo e ainda servirem de exemplo por levantarem uma bandeira que fica cada vez mais urgente em todo o planeta, já que os impactos ambientais têm efeitos gritantes.

O corpo franzino e a aparência frágil de Margaret Mee guardavam a iniciativa e a coragem que muitas vezes falta diante de algo que não está certo. Claro que enfrentar posseiros armados e outras situações narradas no filme podem ser encaradas como imprudências que deve ser evitadas, mas como já previa a pintora, sua obra ultrapassa sua própria existência, e ainda servirá de exemplo durante muito tempo.

A Flor da Lua, que já encanta pelo nome, guiou a última expedição de Margaret pela Amazônia, assim como o documentário sobre seu trabalho, mas toda a beleza da flor ainda é apenas uma parte da importância de sua obra. Vale a pena conferir o filme, que torna irresistível a vontade de saber um pouco mais sobre essa britânica que parece ter encontrado no Brasil uma ótima forma de canalizar seu talento.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Depois de Lúcia (Después de Lucía)


Este longa mexicano, do diretor Michel Franco, aborda um assunto antigo que vem ganhando notoriedade recentemente, o bullying, agravado pelo uso de novas tecnologias, que podem causar uma série de transtornos, conforme vemos no cinema e fora dele.

A protagonista Alejandra (Tessa Ia), uma jovem de 15 anos, muda-se de uma cidade do interior para a Cidade do México, juntamente com Roberto (Gonzalo Vega Jr.), seu pai, pois ambos esperam que a mudança ajude a superar a morte de Lucía, mãe de Alejandra.

Uma mudança em condições normais já demanda adaptação, que nem sempre é fácil. Pai e filha têm que lidar ainda com a mudança inerente na estrutura da família e Alejandra, em meio à fase conturbada da adolescência, se esforça para superar a timidez e o luto através da aproximação de novos amigos. Como se a vida já não estivesse difícil o suficiente para a menina, ela vai para a cama com o namorado, que filma tudo e o vídeo, de alguma forma, é divulgado entre os amigos.

Na via de mão dupla entre a vida e a arte, chama atenção a semelhança da história retratada por Franco com o triste caso real de Amanda Todd, uma canadense da mesma idade de Alejandra, que antes de se enforcar postou um vídeo angustiante no Youtube, explicando sua história. Apesar de o tema central ser o bullying, as conclusões que podemos tirar extrapolam esses limites.

1) Tecnologias recentes permitem grande interação entre as pessoas e o registro fácil de momentos marcantes. O imprevisível são os desdobramentos de como essa tecnologia será usada e suas consequências. Esperar que jovens adolescentes, que já tem um comportamento relativamente inconsequente e costumam buscar e desafiar os limites do que os cerca, tenham maturidade para discernir o que não se deve fazer e o que não se deve divulgar na internet é muito pretencioso, principalmente quando notamos que muitas vezes nem mesmo os adultos têm esse discernimento. Monitorar o comportamento dos filhos nas redes sociais é pertinente, desde que seja com o intuito de ajudar, ao invés de censurar.

2) A partir do momento que conteúdos particulares são divulgados, não há como voltar atrás. É evidente que ninguém quer sua privacidade exposta, mas é interessante, no filme e na vida, como a dinâmica de marketing viral atua nessas situações. Muito conteúdo comprometedor acaba compartilhado na internet, porém vez o outra cria-se uma histeria coletiva, através da qual as pessoas abrem mão do senso crítico e ignoram as contradições do discurso que reproduzem. Julgam e condenam comportamentos cotidianos, como o de Alejandra, ainda que muitas vezes exerçam o mesmo comportamento, com a diferença de não ter o conteúdo divulgado.

3) O bullying deve ser fortemente combatido, seja ele virtual ou físico. Com a recente notoriedade do tema – cuja existência é antiga – já surgem algumas ironias e distorções em torno do próprio conceito, porém os danos causados pela prática de bullying costumam ser intensos e muitas vezes irreversíveis. Assim como podemos conferir no filme, o alvo das agressões passa a ser foco de uma ação social sem fundamentos. Muitas vezes não há motivos racionais para as agressões, para a rejeição e mesmo ao ódio demonstrado pelas amigas da protagonista. No caso específico Alejandra passa a ser odiada por ter ido para a cama com um garoto da escola. Por acaso foi a única?

4) Ambos os sexos sofrem com a violência do bullying, porém dentro dessa temática ainda é possível destacar o machismo que agrava a situação das mulheres vitimadas. Há uma infinidade de exemplos de materiais comprometedores divulgados na internet, a grande maioria de mulheres, que passam a ser fortemente condenadas pela culpa de outra pessoa – dado que o problema é a divulgação do conteúdo. Homens flagrados geram uma pequena repercussão, por vezes até glamorosa, e quando isso acontece com casais, como no caso do filme, a histeria que se forma parece esquecer que há um homem, muitas vezes até responsável, pelo ato imprudentemente censurado.

5) Sem adiantar o final do filme, que vale muito a pena ser conferido, é possível dizer sem estragar nenhuma surpresa que os adeptos da justiça com as próprias mãos ficarão um pouco perturbados. Quem sabe finalmente pensarão sobre a possibilidade de um julgamento ser complexo e estar, de forma muito prudente, subordinado a existência de provas e imparcialidade.

Depois de Lucia é um filme bem didático, sobre um tema que em tese chega a ser bastante simples, mas na prática ainda vai atormentar a sociedade por muito tempo. Um exemplo claro de como o conservadorismo é irracional e maléfico para todos, inclusive para os conservadores.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Uma história de amor e fúria


Meus heróis nunca viraram estátua, morreram lutando contra quem virou.


Essa animação, escrita e dirigida por Luiz Bolognesi, é uma produção nacional não somente por ter sido realizada em estúdios brasileiros, mas também por contar nossa história com base em uma crença indígena e passando por períodos da luta do povo brasileiro.

Os longas de animação vêm ganhando espaço nas telas, com produções cada vez mais elaboradas. Entretanto os filmes produzidos pelos grandes estúdios têm explorado à exaustão a comédia, com personagens caricatos e enredo geralmente semelhante. Aqui Bolognesi se aproxima mais das animações europeias, deixando de lado o simples humor para explorar um recurso mais rico das animações.

O personagem principal, com a voz de Selton Mello, nasce em meio às disputas entre tribos indígenas, uma marca entre os índios brasileiros, porém utilizadas pelos colonizadores para a dominação local. O herói, segundo a mitologia indígena, está predestinado a uma vida de luta contra o inimigo.

Ao longo da história do Brasil o protagonista aparece em quatro episódios, não busca a luta, mas sim sua amada Janaina (Camila Pitanga). Apesar disso vemos que o casal, no constante cabo de guerra entre opressores e oprimidos, está sempre do lado mais fraco.

Os episódios escolhidos para serem retratados no filme são, além da dominação inicial por parte dos portugueses, a revolta da balaiada, a ditadura militar e um futuro não muito distante, nem muito esperançoso, no qual a água potável é vendida a preço de ouro, devido à escassez.

Fica claro no filme, principalmente fazendo uma analogia com os dias atuais, que a história é realmente cíclica e muitos outros episódios poderiam ter sido escolhidos para representar a ideia de um povo oprimido que, diferente da imagem de pacífico que insistem em nos empurrar, sempre procura formas de combater e lutar por direitos tão básicos que quando apresentados no cinema ficam evidentes, mas na prática, talvez pelo hábito enraizado há séculos, frequentemente passam despercebidos.

Somos tão acostumados com a história contada pelos opressores que a animação acaba funcionando como documento de versões alternativas para fatos consagrados. Desde a própria crença indígena, desconhecida para a maioria dos brasileiros, até fatos históricos como a criação do exército brasileiro, tendo atuado pela primeira vez contra a própria população do país, somos apresentados a uma série de fatos que nos fazem pensar sobre a origem de nossa sociedade e, consequentemente, dos problemas sociais que enfrentamos.

Se pensarmos nas dificuldades, sobretudo econômicas, que o cinema nacional precisa enfrentar, que inevitavelmente estão presentes também para animações, é muito mais viável não tentar enfrentar as superproduções americanas de igual para igual, mas criar uma identidade própria para as animações nacionais, que possam servir de instrução, como o próprio cinema tradicional vem fazendo desde sua origem, e também atrativo pela forma lúdica quase inerente às animações.

A produção deste longa contou com certa tecnologia, mas a maior parte do trabalho foi feito mesmo com desenhos manuais. A técnica trabalhosa aprimora os profissionais envolvidos e leva às telas os quadrinhos, sempre populares entre os jovens. Contar histórias, fictícias ou não, é uma forma de transmissão de cultura e a associação de cinema e quadrinhos é extremamente benéfica para tornar a história (acadêmica) mais atrativa.

Não há como não se interessar pela luta do protagonista ao longo dos séculos, pelo romance que resiste aos percalços e as injustiças que permeiam a sociedade em tempos diversos. Para além da ficção, ter como a guia da história uma crença indígena resgata uma face oculta da história do Brasil, que começou bem antes da chegada dos portugueses.

Unindo algumas frases de efeito do filme, “viver sem conhecer o passado é andar no escuro” e o esclarecimento proporcionado ao notarmos a exploração cíclica de nossa história é uma arma poderosa, que não por acaso costuma ser coibida. Para o protagonista, “mesmo sem perceber, todo dia a gente está lutando por alguma coisa”. É estimulante ver que muitas vezes essa “alguma coisa” é histórica, e a luta não é solitária, traz consigo um acumulado de motivações.

Uma História de Amor e Fúria tem tudo para estimular novas animações nacionais, que supera a verba exorbitante dos grandes estúdios de animação com talento e conteúdo, lançando uma história que diverte, entretém, mas principalmente ensina!


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