sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Salve Geral

Com o longa Salve Geral, que estreia dia 02 de Outubro com possibilidade de representar o país no Oscar, Sérgio Rezende nos remete a maio de 2006, quando o PCC – Primeiro Comando da Capital – surpreendentemente conseguiu parar a maior cidade do país.

Através da vida de Lucia (Andréa Beltrão) e seu filho Rafa (Lee Thalor), que em pouco tempo passam de uma família de classe média para envolvidos com o Partido que comanda informalmente o sistema carcerário do estado, o diretor trabalha com diversos pontos sob a perspectiva das partes envolvidas, ou seja, personagens envolvidos diretamente com as atividades carcerárias; a classe média, distante do sistema prisional; políticos atuando em decisões; e delegados incumbidos de resolver diversos problemas. Como já era de se esperar devido à temática o filme já causa grande polêmica antes mesmo da estreia, principalmente pelo diretor não trabalhar com uma visão extremamente moralista.

A guinada na vida de Lucia começa com o declínio econômico após a morte do marido. A advogada que nunca exerceu a profissão tenta agora manter a vida dando aulas de piano e o instrumento no filme é um elo entre o passado de classe média alta e o presente cada vez mais caótico. Rafa recusa-se a aceitar a nova realidade de sua vida e em uma situação circunstancial de irresponsabilidade da juventude (semelhante às comentadas no artigo sobre o filme “Cama de Gato”) assassina uma jovem e é condenado. Este é o eixo do filme, que nos permite notar a mudança de atitudes de Lucia. A princípio o que restava era orientar o filho a ficar longe de qualquer confusão para que o réu primário cumprisse um sexto da pena e pudesse gozar dos benefícios concedidos aos detentos com bom comportamento, entretanto nem tudo é tão simples dentro da cela, e fora da cadeia a protagonista percebe aos poucos que pode se reaproximar de sua antiga vida de classe média alta e cuidar de seu filho, dando-lhe um pouco de conforto e segurança, de forma rápida, ainda que ilícita e, para seus antigos padrões burgueses, imoral.

A recente amizade com Ruiva (Denise Weinberg), advogada ligada ao Partido, aproxima Lucia da facção que provou, através dos ataques de 2006, dominar o sistema carcerário paulista. É interessante a abordagem do diretor, que dialoga muito com a obra 1984 de George Orwell. Em um universo bem menor que o abordado no livro, temos aqui a presença do Partido, que a princípio sabe de tudo, coordena ações, dá ordens e nunca falha – como quando um de seus integrantes justifica um erro gramatical do manifesto, alegando que quando tomarem o poder a gramática será adequada ao que o Partido impor. Um dos líderes, o Professor (Bruno Perillo), explica a origem do movimento como uma intenção de ordenar um sistema prisional que beira a falência, evitando estupros, roubos, etc. Sem querer defender a existência de um poder paralelo para tomar atitudes que cabem ao estado, ressalto que a solução destes problemas é evidentemente necessária, e não há indícios de quando algum governo tomará tais atitudes. É impossível negar que os detentos não esperarão por medidas institucionais e tentarão resolver problemas latentes por suas próprias vias.

O outro extremo abordado é a classe média, alienada do sistema carcerário, que em prol da própria segurança adota a cômoda postura individualista. No filme a representante desta classe é Ângela (Chris Couto), irmã de Lucia. Ambas promovem um marcante diálogo maniqueísta no qual uma defende ações mais severas da polícia de forma a anular a expressividade dos detentos e a outra argumenta que a irmã, ao falar sobre o que não conhece, generaliza e simplifica demais o problema em questão. Aqui entra a principal crítica que o filme tem recebido, pois é cada vez maior o senso comum de que detentos devem ser tratados da pior forma possível. Diante de um filme com esta temática não demora a aparecerem defensores da pena de morte e nas entrelinhas Rezende provoca, mostrando que o Partido adota a pena de morte, ou seja, neste sentido os adeptos à extrema punição igualam-se aos que são alvos de suas indignações.

Coordenando formalmente os presídios, incumbido de prevenir e posteriormente resolver o caos, temos o delegado que além de lidar com facções criminais sofre pressões de políticos para resolver os problemas de qualquer forma, desde que discreta para não alarmar a população influenciando nas eleições. O papel dos políticos envolvidos é bem sintetizado pela frase do filme: “polícia eficiente mais bandido morto é igual a voto.” Assim o esquema velado de propinas e tráfico de influências do presídio não é coibido, desde que não vire um escândalo que choque eleitores. O desenvolvimento do esquema de corrupção resulta no poder do Partido, que consegue parar São Paulo em represália as medidas do delegado. Mais uma vez uma instituição chega ao ponto de ter que remediar, ao invés de prevenir.

Longe de ser uma apologia ao crime o trabalho de Rezende mostra que a população carcerária é formada por pessoas – ainda que tenham cometido crimes, portanto passíveis de punição. Aos que ainda acreditam que detentos devem ser tratados pior que animais, vale lembrar que apesar de muitos não terem tido acesso à escola, são pessoas que diferente de animais maltratados, reagirão racionalmente com o intuito de melhorar suas condições. É constrangedor notar que um pensamento medieval, de que a punição através dos maus tratos é a solução para crimes, ainda vigora. Obras como Salve Geral dão um alento no sentido de modernizar essa ideia cruel.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pro dia nascer feliz


Após uma deliciosa viagem pelo Brasil que toca sanfona com o documentário “O Milagre de Santa Luzia”, de Sergio Roizenblit, refaço a viagem, mas desta vez de forma menos prazerosa com o longa de João Jardim.

Distante do sentimento descrito por Cazuza na música homônima, em que notamos o relato da vida prazerosa e descompromissada que a juventude pode oferecer, Jardim parte de Manari, em Pernambuco, cidade com o menor IDH do país, para o Rio de Janeiro e termina sua viagem em São Paulo. No caminho o diretor faz escalas por diversas escolas, através das quais podemos notar algumas semelhanças e diferenças que nos permitem tirar algumas conclusões sobre o sistema de ensino do Brasil.

Alguns problemas relatados, como a falta de estrutura, a violência, o consumo de drogas, etc. não podem passar desapercebidos, entretanto muitos destes problemas são bem conhecidos, de forma que o filme apenas os deixa mais concretos. Jardim nos dá maior precisão ao indicar que 13700 escolas brasileiras não têm banheiro; 1900 sequer têm água; a metade dos alunos que concluem o ensino médio não sabe ler ou escrever; e a conhecida violência ganha uma nova dimensão com o impressionante relato de uma estudante que assassinou, dentro da escola, a garota que barrou sua entrada em uma festa, alegando que matar sendo “de menor” (sic) não tem problema, pois três anos passam rápido.

Apesar destes dados desconfortantes e do abismo entre escolas públicas e o Colégio Santa Cruz (da elite paulistana), é interessante notarmos certas nuances do filme. Não é um trabalho com rigor científico e a montagem muitas vezes influencia em nossas percepções, não obstante é perceptível uma grande distância entre os estudantes e a instituição de ensino. Na escola particular essa distância é reduzida, porém notável, já na escola pública os estudantes não reconhecem a instituição como um apoio que pode auxiliá-los. Em geral notamos uma grande luta contra o que parece ser um entrave na vida dos jovens.

Os casos isolados explorados no documentário, de estudantes que superam as adversidades de um sistema de ensino deficitário e conseguem resultados acima do que seriam esperados, desaparecem quando as câmeras do diretor estão ausentes e voltam para a massa de alunos cujas individualidades não são potencializadas. A maneira pragmática que as aulas são ministradas é repetida em todas as seis escolas do documentário, ou seja, ainda que a escola particular e mesmo algumas escolas públicas tenham algumas atividades que quebrem com a rotina de diversos alunos voltados para um professor que transmite a matéria, essa é a forma predominante de ensino, havendo poucas formas de interação entre os estudantes e ainda menos entre estes e seus professores.

De uma forma geral os adolescentes não encaram a escola como um local para trabalhar em conjunto, buscando o apoio de professores para investir no próprio futuro. No setor público este sentimento é evidentemente mais forte por uma série de fatores envolvendo estudantes desmotivados, professores com baixíssimas condições de trabalho, falta de um plano de educação em longo prazo, etc. Todos esses fatores resultam na falta de perspectiva geral, pois em um plano mais abrangente não podemos negar que a educação voltada para os interesses do capital expande as diferenças de classe. Logo seria ilusório convencer um estudante de classe social mais baixa que seu esforço pessoal resultará em ascensão social. Sem querer afirmar que a falta de estudos terá o mesmo efeito que o empenho nos mesmos, é difícil argumentar com estudantes que relatam seus assaltos quando eles afirmam que “até os políticos ricos roubam também, com eles não acontece nada e roubam mais”.

Um ponto positivo mostrado no documentário são algumas atividades, além das salas de aula, oferecidas pela escola. Aceitando que o sistema de ensino do país beira a falência e a solução em curto prazo é impossível, o pouco que pode ser feito de forma imediata é trabalhar com alguns problemas específicos. Juntando dois trechos distintos do filme – que poderiam ter sido explorados pelo diretor – vemos uma aluna do Colégio Santa Cruz falando que faz yoga, natação e outras atividades fora da escola; e em uma escola do Rio de Janeiro os estudantes participam de um projeto de música dentro da própria escola. Ou seja, todo adolescente precisa de atividades que lhe ofereçam bem estar, sendo que estudantes de classes mais altas podem pagar pelo que preferirem. A escola pública das periferias tem espaço e potencial para oferecerem aos seus alunos atividades lúdicas que os aproximarão da escola fazendo com que a imagem desta seja diferente de um obstáculo em suas vidas.

Um dos alunos que participa de um grupo musical da escola do Rio afirma que já empunhou armas e que isso impressionava as garotas, mas agora essa notoriedade se dá através da música. Este fato é um tanto evidente, ou seja, a escola de ensino médio trabalha com adolescentes que inevitavelmente buscarão notoriedade diante dos amigos. Ao invés da escola massificar os estudantes, poderia, através de projetos paralelos aos estudos, oferecer aos jovens uma possibilidade de trabalharem pontos que cada um acredita ser importante. Voltando na música de Cazuza encontramos o verso “essa é a vida que eu quis”. Um grande desafio para a escola moderna – independente da classe social de seus alunos – é auxiliar a descoberta de qual é a vida pretendida, e de como atingir tais metas.

Ao abordarmos a educação no Brasil encaramos um problema extremamente complexo. Nem o trabalho de João Jardim, nem este pequeno texto têm a pretensão de esgotar as possibilidades do tema. Mas trazem algumas ideias inquietantes sobre um ponto decisivo para qualquer país que tenha a pretensão de crescimento.

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